sábado, 26 de março de 2011

Corpos de aluguel num contrato do Patriarcado



Os corpos dóceis e disciplinados constantemente cumprindo o rigor civilizatório, não mais sentem, a muito não se sentem. Como objeto da modernidade encontra-se fragmentado, com partes individualizadas e racionalizadas cada qual na sua prateleira.        

No aprimoramento de discursos e métodos, essa mesma modernidade apartou corpo e alma, e vivemos desde então, com o corpo partido e sem sentido, nomeado e significado segundo a construção, legitimação e querer do outro.

O discurso científico destitui as corporalidades, os corpos vivos e vividos. Um corpo é então, um conjunto de partes, do ser biológico, naturalizado para uso e fruto da medicina. Nada sabemos desse corpo, ele apenas nos pertence juridicamente, mas, as suas práticas estão completamente calcadas nas verdades cartesianas e no desejo do outro.

Um corpo de mulher partido, com seus Fenômenos rotulados, a todo o momento, resignificado. Temos um corpo que é peso, carregamos, mas não o sentimos nosso, foi alguém que nos deu, é alguém que decide como ele deve ser e o que devemos e podemos fazer com ele. Acredito que vivemos sob a edge de normas concretas para o uso do corpo. Um manual de instrução do corpo.

Para economia das trocas simbólicas, esse despedaçar de corpos, interessa ao passo que as corporalidades são mortas e surgem as dinâmicas de corpolatrias. Com aparatos técnico-científico, passamos então, a criar a noção de propriedade dos corpos a partir de coisas que adereçamos a ele, o brinco, a roupa, o sapato, a maquiagem etc. Mais que isso vivemos o advento das modificações corporais, a bunda, os peitos, a barriga, as drogas emagrecedoras, os cabelos lisos, a cor dos olhos. Pronto! Um cyborgue; que é meu porque eu comprei.

Mas, bom seria se análise completa da propriedade dos corpos fosse assim tão linear. Infelizmente não é. Se quem construiu esses discursos que ganha vida na experiência corporal foram machos, acadêmicos e cientistas, não por acaso, esse mesmo discurso serve ao modelo capitalista, por compor um pensamento hegemônico dos modos de produção moderna. Porém, não podemos esquecer também, que outras formas de sentir o corpo, e, portanto de ser o corpo, resistem. Não pode se desconsiderar organizações sociais onde esse discurso intelectualizado ou o saber científico ressona menos. E, muito embora, pareça inerente à existência das mulheres, a auto-despropriação do corpo, há resistências.

Lembro do fenômeno das funkeiras, no Rio de Janeiro, que fazem o culto ao corpo, mas, preenchido de sentidos, concepções e até padrões estéticos distintos dos hegemônicos em outros grupos sociais. E me parece que é justamente o sentir deste corpo que cria condição de igualdade entre fêmeas e machos nesse ambiente, descrita, por exemplo, na música da cantora funkeira Priscila Nocetti.

hoje eu tô soltinha, mas não estou sozinha, fico com quem eu quero, porquê a vida e minha ... E eu requebro, rebolo ,desço até o chão. Dou mole provoco mais não sou sua não .” (Priscila Nocetti).

E talvez, em outros espaços sociais não “rebolamos, não descemos” porque sequer estamos autorizadas a isso. Lembro também das meninas e mulheres, às vezes até idosas; de uma comunidade aqui perto da minha casa, que nos dias de calor andam de soutien e se lavam em mangueiras, em rua pública, numa correspondência direta à necessidade do corpo e pouco “racional”. Ou seja, acredito que as práticas corporais são distintas de acordo com a forma como sentimos o corpo, e quanto mais susceptível ao discurso intelectual, moral e científico, mais inquilinas seremos deste corpo.   

O pensamento moderno serve à estrutura. O debate não é apenas estrutural, é preciso fazer a cruzada das subjetividades para compreender a real necessidade da reintegração de posse do corpo. As outras demandas decorrem disso.

Mirani Barros – Nutricionista

Um comentário:

  1. ótimo texto, especialmente porque nos leva a uma reflexão importante: o corpo não é um dado da natureza, ao contrario, ele é produzido culturalmente.Nos atentar para os diferentes contextos em que os corpos femininos são produzidos é refletir sobre os paradigmas hegemonicos, é perceber o que está à margem dos padrões. Como podemos nos reapropriar dos nossos corpos com emancipação e autonomia? Como produzir corpos fora do lugar do corpo reprodutor ou do corpo-mercadoria? Questões que precisamos responder rapidamente...

    ResponderExcluir